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CEGOS, SURDOS, MAS NÃO MUDOS

Quando ouvimos os jornalistas e comentadores falar na “bolha politico-mediática” não podemos deixar de esboçar um sorriso: estarão eles a falar de fora sobre si próprios ou simplesmente a reproduzir essa mesma bolha, imaginando-a a partir de um ponto de vista impossível? Não é claro se estamos perante filósofos cartesianos ou wittgensteinianos: o sujeito é um ponto exterior ao próprio mundo que observa, ou, pelo contrário, observa-se a si próprio como um dos elementos do mundo? Mas de onde olha então o comentador para si próprio? Fica a dúvida no ar.


O que é certo é que esta bolha tem propriedades isolantes graves. A aderência à realidade é ténue, escorregando em vídeos virais que mostram que para muitos destes comentadores Portugal não é muito mais do que Paço de Arcos. O seu papel ilustre já não brilha, já não se ouve o seu vibratto. Queixam-se do povo, queixam-se da falta de leitura. Mas será verdade? Ou serão eles que já não são lidos? Como estações que dantes cruzavam mundos e vidas e que hoje não passam de meros apeadeiros. Talvez o mundo tenha corrido, seguido em frente, e o Portugal dos pequeninos já não seja tão pequenino assim. Mas o seu mundo ficou mais pequeno, tão pequeno que hoje se resume a uma mesa oval num estúdio.


Muitas questões surgem quando vivemos num sítio tão abafado. Não percebemos as  correntes, não viajamos nos mesmos barcos, não sentimos os mesmos enjoos. Ficamos presos num pequeno mundo de ilusões altamente privilegiadas. Quando Mem Martins bate à porta, espantamo-nos com o seu sucesso. Talvez nunca tenhamos lá passado e por isso o ressentimento permaneça um mistério dos incultos. Mas quem é inculto nesta dialética? Também não ouvimos recitais de Homero nem discussões metafísicas nos vários eixos televisivos, nem ouvimos opiniões que ofereçam algo de novo ou diferente do que outros já disseram no seu lugar. O vazio é tão grande quanto o vazio que acham encontrar no povo. É proporcional à sua ignorância.


Cultivam-se políticos a partir destes viveiros de marketing. Constroem-se narrativas a partir de trocadilhos, esquecendo a memória e a substância. Afastam-se opiniões que embaracem os convidados e os investidores, conseguindo com isso apenas afastar também todos os que não vivem refrescados pelo ar condicionado. Existe um país a gritar que não chega ao silêncio dos media. Uma mordaça que não cala, simplesmente desvia o ressentimento para quem tem explicações fáceis e conspirativas. Queixam-se da crise da mediação da informação, mas não foi o povo o que inventou o TINA. Queixam-se das redes sociais, mas os próprios jornalistas procuram ser influencers. Uma mínuscula fatia da comunidade acha-se o centro, o padrão, o normal, cegando-se à realidade esmagadora de todos os que não circulam na mesma rua. 


Portugal já não está em 1975. Não precisamos de espertos para explicar a realidade, nem queremos oráculos das 8 da noite. A alfabetização funcionou mesmo. O seu privilégio é construído na opressão material das oportunidades, dos circuitos informais, das amizades. A bolha politico-mediática não é mais do que a bolha do privilégio de quem goza do acesso ao poder, surda e cega perante o seu próprio país. Uma bolha construída pelos mesmos que agora se queixam dela, alimentada pelas suas sucessivas pseudo-autocríticas. Esquerda e direita já não conta quando nos tornamos no bobo da corte em horário nobre nem quando fazemos o número de ilha progressista num arquipélago neoliberal. Trata-se de uma bolha construída e reforçada para auto-reflexivamente anular a consciência da sua própria propaganda. 


Felizmente, o país é mais do que uma redacção. Mais cedo ou mais tarde, aperceber-se-ão disso. Que mais não seja quando a roda do capital começar a engrenar e o Pai Estado for chamado a pagar as dívidas. O castelo de cartas não dura para sempre. Quando a realidade entrar em directo e a bolha rebentar, veremos de que lado estarão. 

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Ricardo N. Henriques