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CONFISSÕES (SEGUNDA PARTE)

— Bom dia — respondeu o Padre com um ar distraído enquanto se aproximava do rapaz. — Seja bem-vindo. Lamento a temperatura aqui dentro, não há muito que possa fazer. Pela tarde costuma melhorar. 


O jovem rapaz ergueu os ombros, parecendo concordar com o padre: pela tarde, de facto, costumava melhorar… pelo menos noutros tempos. Passou um curto compasso de silêncio enquanto o jovem continuava a combater discretamente os calafrios em várias frentes. 


— A sua cara... — continuou o padre, inspecionando o jovem com um olhar sereno mas curioso. — Diz-me alguma coisa. O jovem é daqui da aldeia? 

— Sou sim, padre Jerónimo. Nasci aqui na aldeia, mas fui para a cidade há alguns anos. Já aqui não vinha há um tempo. Sou o Pedro, o filho da dona Irene. Lembra-se da dona Irene? — respondeu o jovem com o devido respeito. 

— A dona Irene... — repetiu o padre, levando a mão à cabeça quase careca enquanto pensava. — Estou a ver! Claro, o Pedro da dona Irene. Como está a sua mãe? 

— A verdade é que já esteve melhor, padre. Tem estado doente. O Doutor Fonseca ainda não se conseguiu pronunciar sobre a causa, mas suspeita algo relacionado com os rins — relatou então em tom menor.

— A sério? Que tristeza. — respondeu o padre, genuinamente angustiado pela notícia. — Irei rezar por ela.


Passou outro compasso de silêncio, um silêncio de tal modo dominante que os ouvidos mais finos poderiam detetar o bater de um coração. O padre olhava para Pedro, cujos olhos estavam agora fixados no banco da frente. 


— Então e... — recomeçou o padre, apoiando a mão sobre esse banco, — o que o traz aqui? Não à terra, pois suponho que tem de cuidar da sua mãe, mas a esta casa de Deus. Não me leve a mal, mas não me lembro de o ver por cá muitas vezes depois do seu batizado, mesmo enquanto cá vivia. E o jovem parece-me algo… atormentado. Imagino que seja mesmo por causa da doença da sua mãe? — perguntou o padre com uma sincera curiosidade.

— Não levo a mal — respondeu Pedro num suspiro, antes de continuar. 

— Não é a doença da minha mãe. Enfim, não só. O que me leva aqui? Nem eu sei, padre. Tenho andado a pensar sobre a vida. Estava só a meditar, por assim dizer. 

Estas palavras trouxeram um leve sorriso ao padre. 


— Faz muito bem. Não há melhor sítio no mundo para o fazer do que nesta casa — chutou o homem religioso ao seu conterrâneo. 

— Não possuo a comunhão especial que o padre tem com o Senhor, mas sempre me posso abrigar aqui — pronunciou então o jovem, tentando manter-se modesto, mas à espera de provocar um sermão gracioso do padre Jerónimo, um sermão daqueles como por poucas vezes ouvira outrora. 


O padre, tal como esperava Pedro, ficou imediatamente mais agitado. Um qualquer fisiólogo ter-lhe-ia visto as pupilas a dilatar, a saliva a acumular-se, o sangue escalando pelas artérias e um ar, senão de inquisição, pelo menos inquisitivo. 


— Ah, Pedro, não diga isso. Somos todos iguais perante Ele. Pois não foi Paulo que disse que não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher? Somos todos um no nosso Cristo, e todos são capazes de amor, caridade e fé. Quanto muito, nós seminaristas por vezes saciamos demasiado o conhecimento daquilo que não é alcançável à nossa razão limitada, e no cuidado pastoral das almas jamais conseguimos alcançar a ternura do Deus nos presta. 


Pedro acenava com a cabeça enquanto ouvia o padre. Regozijava-se agora das memórias dos longos e belos sermões de outros tempos. Qualquer homem religioso, desde que leia e escreva – aptidão essa nem sempre garantida naquele tempo – pode entrar no seminário. No entanto, poucos são os que possuem o real talento de um orador que inspira os seus ouvintes, tal como Jesus, segundo o que se recita nos evangelhos, inspirara os seus. O Padre Jerónimo era um orador nato. Talvez não tanto pela qualidade retórica de um Protágoras ou de um Cícero, mas antes pelo carisma familiar, pela empatia transparente que lhe era natural. 


— O padre tem razão — confessou Pedro, respondendo às palavras proferidas pelo padre, já quase inaudíveis na sua mente distraída. — A minha alma anda atormentada. Tenho uma confissão... ou melhor, um dilema, padre Jerónimo.

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Daniel Torres Pacheco