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CONFISSÕES (PARTE FINAL)

— Mas a igreja não tem nação, Pedro. E Deus, de quem sou o único servidor, muito menos. As nações tentam controlar a fé, mas a vida espiritual está fora das legislaturas destas. Como disse, somos todos iguais perante o Senhor, e mesmo se Ele deu a César o que lhe pertence, a escolha entre o bem e o mal estará sempre no domínio da consciência de cada um, e da liberdade que o nosso Senhor ofereceu aos homens para escolherem o bem, libertando-os da servidão dos deuses e ritos antigos, das Fúrias que teciam os destinos macabros de homens, heróis e deuses. Foi na cruz que nos ofereceu a redenção, e cabe-nos a nós ajudar essa nova vida a triunfar sobre a morte.


As palavras, ditadas com um volume crescente, começavam a ecoar na igreja vazia daquela manhã. E também no espírito do jovem.


Uma vez terminado o sermão, Pedro levantou-se, dirigiu-se para o Padre Jerónimo e, abaixando-se, beijou as mãos daquela figura paternal. O padre deixou Pedro agradecer à sua maneira, maneira essa a que as velhas senhoras da aldeia o tinham habituado. Pedro ergueu então a cabeça e, fazendo uma vénia, virou-se com pressa em direção à saída. O Padre Jerónimo, satisfeito por aparentemente ter ajudado o conterrâneo, parecia ainda algo confuso com a bizarra interação que acabara de ter lugar na sua igreja. Há quanto tempo não via Pedro? Dez, quinze anos? O que fazia ele ali? – o que fazia ele realmente ali?  


Quando saiu da igreja, Pedro dirigiu-se para uma pequena vereda inúmeras vezes utilizada pelas gentes da aldeia que desciam até ao riacho durante as longas tardes de verão. À medida que ia descendo, viu-se invadido por uma sensação estranha e desconfortável; uma espécie de castigo espiritual parecia puxá-lo para baixo, em direção ao riacho. O murmúrio das águas, chocando com as pedras lisas e umas poucas árvores caídas, intensificava-se.


Passado um minuto, chegava ao riacho. Esperavam-no dois homens com um ar urbano, barbas feitas, mais velhos do que Pedro, embora ainda jovens o suficiente para carregar os quilómetros do monte. Um esperava impaciente, fumando um cigarro e andando de um lado para o outro. O outro estava sentado numa rocha, balançando os pés por cima do riacho.


— Então!? — exclamou o primeiro, assim que avistou Pedro.


— Parece-me que vossas suspeitas estão confirmadas. 


— A sério? O que te disse ele? —, respondeu o homem, estupefacto.


— Aquilo que suspeitavam —, declarou secamente Pedro. — O padre não me parece acreditar na legitimidade das autoridades, e a dada altura não percebi se estava a falar do Cristo ou do Lenine.


— Incrível! Estás a ver? —, disse então o agente, virando-se para o colega sentado na rocha. 


— Com que então até os padres! Temos vários elementos de suspeita, mas o facto de ser descarado e dizer estas coisas a um quase desconhecido que o visita só piora as coisas. Não sei se podemos ter um padre a pregar estas coisas, não interessa se estamos mais perto de Espanha do que de Lisboa. Enfim temos o que precisamos. — concluiu. Nesse momento, atirou o cigarro para o riacho e assobiou para o colega, que continuava a balançar os pés em contraponto. — Parece-me que o padre está a precisar de falar um pouco mais. Vamos à missa! — cuspiu o agente entre risos, antes de se virar de novo para Pedro, oferecendo-lhe um pequeno saco escuro. — Aqui tem. Veja lá, aproveite e leve a sua mãe para a cidade, onde pode ser tratada. Se precisarmos de si outra vez, o nosso Abel pôr-se-á em contacto consigo. Não nos esquecemos de quem trabalha nas sombras — prometeu por fim num tom sério. 


Os dois agentes, que não vestiam qualquer peça oficial, dirigiram-se então pela vereda acima. Pedro, que olhava ainda para o saco que tinha na mão, sentiu um sabor ácido saltar-lhe à boca. Agachou-se e tentou suprimir as lágrimas que de repente o assaltavam. O ruído do riacho já não era apenas um murmúrio distante, mas antes soprava como um vento torrencial.


Quando se recompôs, decidiu subir por outra vereda que passava por trás da igreja. Foi subindo, ainda desolado, forçando e carregando aquele corpo fraco e esguio. — “Que fiz eu?” — lamentou-se. Devastado mas de certo modo rendido a seu fado, continuou a subir pela vereda, pensando naquele padre tão amável e no sermão que lhe dera. — “O último sermão do padre Jerónimo não podia ter sido melhor” — pensou então.


Quando chegou ao topo daquele monte, viu o milagre que se lhe oferecia e que nos últimos anos quase deixara de conhecer: a ternura dos montes verdes e vastos, as imponentes vinhas em cascata, o leve cheiro de pinheiros bravos, a memória das tardes que passara no monte, e o riacho que de novo bafejava uma leve e distante melodia. Os sinos dobravam as doze harmoniosas. Ali por perto resplandeciam os primeiros rebentos de malvas lilases. O inverno, teimoso, começava por fim a levantar o seu cerco.


Daniel Torres Pacheco

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Daniel Torres Pacheco