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DE QUANDO O SEXO ERA SÓ UM

A nenhuma pessoa do século XVI lhe estranharia, ao ver a imagem reproduzida neste texto, saber que é um útero. É isso que representa, pois foi utilizada na obra De humani corporis fabrica do médico Andreas Vesalius, publicada em 1543, para representar o aparelho reprodutor das mulheres. Desde a Antiguidade e até ao século XVIII, uma das principais interpretações científicas sobre a sexualidade humana baseou-se na existência de um único sexo que apresentava uma única diferença: nos homens os genitais saíam para fora do corpo e nas mulheres esses mesmos genitais encontravam-se dentro. O sexólogo Thomas Laqueur, no seu livro A Construção do Sexo, chamou a isto o modelo de sexo único. 


A explicação científica baseou-se na teoria dos humores, que relacionava os elementos fogo, água, terra e ar com as qualidades de quente, húmido, seco e frio. Nos corpos humanos, considerava-se que estes elementos se encontravam nos humores, que eram o sangue, a bílis negra, a bílis amarela e a fleuma. A distinta combinação destes determinava a personalidade, que podia ser sanguínea, melancólica, colérica ou fleumática. 


Acreditava-se que os homens eram mais quentes e secos do que as mulheres. Durante a concepção, o calor fazia com que os seus genitais fossem expulsos para o exterior, enquanto que a falta daquele calor nas mulheres fazia com que os genitais não se desenvolvessem o suficiente para sair até fora, ficando no interior. O médico grego Galeno explicava na sua obra Do Uso das Partes que “todas as partes que os homens têm, as mulheres também as têm, e entre eles há apenas uma diferença [...], que as partes das mulheres estão dentro enquanto que as dos homens estão fora”. Esta visão reflete-se na representação do útero na obra de Vesalius. 


Dado que o desenvolvimento do aparelho reprodutor se atribuía ao calor, uma presença ou ausência repentina deste podia provocar que as pessoas transitassem de um sexo para outro. O médico espanhol Juan Huarte de San Juan, no seu livro Exame de Engenhos, publicado em 1640, afirmou que “muitas vezes a natureza fez uma fêmea e [...] ao sobrevir aos membros genitais uma cópia de calor, por alguma razão, estes saíram para fora, e assim ficou feito varão”, tal como “muitas vezes tem a natureza feito um varão, com os seus membros genitais para fora, e ao sobrevir-lhe frialdade, estes voltaram para dentro, e ficou feita fêmea”. Um século antes, em 1543, o cirurgião francês Ambroise Paré narrava, na sua obra Monstros e Prodígios, o caso de uma jovem chamada Maria Petaca, a quem “lhe saiu um membro viril, que estava oculto dentro, e assim passou de fêmea a macho”, e também o de “um homem [...] que [...] se tinha considerado mulher até aos catorze anos”, mas que um dia “as suas partes genitais de homem se desenvolveram”. 


Assim, durante séculos considerou-se que a masculinidade e a feminilidade derivavam do calor, frialdade, secura ou humidade que apresentasse cada corpo. Esta interpretação teve um fundamento e uma explicação científica e não foi nem mais nem menos correta do que as teorias atuais, nem estas o serão em relação às que surjam no futuro, na medida em que todas respondem ao conhecimento que se tem em cada momento. As interpretações da sexualidade humana respondem às necessidades sociais de cada momento, servindo para sustentar as diferenças sociais e de género existentes.


A ciência é influenciada pelas relações sociais e pela perspetiva das pessoas que a desenvolvem. Durante muitos séculos, a investigação científica foi liderada maioritariamente por homens, de forma que as conclusões a que chegaram têm estado determinadas pelas suas realidades específicas. A ciência deve ser compreendida como consequência do estado do conhecimento em cada momento e não como um saber ou verdade universal, pois, se fosse universal, nunca mudaria e seria sempre aplicável a qualquer sujeito.


O sistema de sexo único foi substituído quando deixou de ser útil para explicar o mundo, dando passo ao modelo binário de sexo-género que já estava implantado no século XVIII e que continua vigente na atualidade. Este toma como verdade universal a existência de dois sexos opostos que se correspondem a dois géneros numa associação que se proclama como natural e que trata as exceções como anomalias. Mas como é que ia ser uma verdade universal se há menos de 300 anos se pensava de modo diferente? As “exceções que confirmam a regra” não deveriam formar parte da própria regra? Porquê excluir algo que existe ao não ajustar-se à interpretação que se faz desta, em lugar de procurar uma interpretação que o inclua, dado que existe?


A explicação da sexualidade humana antes do século XVIII convida-nos a reconsiderar as categorizações atuais. Considerar antinatural qualquer realidade que escape à norma é reflexo duma enorme falta de jeito e duma profunda ignorância sobre a natureza, a construção da ciência e o sistema sexo-género, pois ignora que, nos mais de 300.000 anos de existência dos homo sapiens, houve diversas formas de ver o mundo. Tal como o modelo de sexo único se tornou obsoleto, o sistema binário  deve dar lugar a novas interpretações científicas que incluam todas as pessoas que não encontram um lugar numa teoria que também deixou de dar resposta às nossas necessidades. Não é a natureza que muda, mas a nossa percepção dela.

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Alba Gómez