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BETÃO - REPORTAGEM FOTOGRÁFICA

Vivemos num período no qual a habitação é um dos temas mais presentes no debate público. Além da necessidade de que toda a gente tenha uma casa, o que a lei santa da propriedade privada não permite, é também importante reflectir sobre os espaços urbanos que partilhamos quotidianamente. Em que tipo de espaços estão localizadas as nossas casas? Que tipo de relação proporcionam com a vizinhança? 


Decidimos também deixar-nos levar pela sugestão feita por Walter Benjamin, no texto "O autor como produtor": "Temos que exigir dos fotográfos a capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as liberem da moda e lhe confiram um valor de uso revolucionário. Mas só poderemos formular convin-centemente essa exigência quando nós, escritores, começarmos a fotografar". Por tudo isto, apresentamos um fragmento de um pequeno ensaio fotográfico sobre como a arquitectura pode moldar as nossas vidas.


BETÃO foca-se na zona residencial de Telheiras Sul, em Lisboa, Portugal. Um bairro construído nos 1970s numa zona que era, na altura, um dos subúrbios da cidade. O projecto de construção foi desenvolvido e gerido pela EPUL, a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa.


Escolhi este bairro de Lisboa porque Telheiras tem características sociais e arquitectónicas distintivas, já que a maioria dos edifícios é do mesmo período. Hoje, Telheiras é um bairro de classe média/alta, embora tenha sido inicialmente planeado como um bairro residencial moderno e acessível, destinado a diferentes grupos sociais. O planeamento arquitectónico é linear, sóbrio e orgânico — os edifícios unem-  -se e apresentam pouca, ou nenhuma, ornamentação. Muito semelhante às “New Towns” do Reino Unido (cerca dos anos 1940–1960) e à arquitectura brutalista (meados dos anos 1950–1960).


É interessante notar que, ao planear este novo bairro, houve a preocupação de projectar os edifícios virados para dois lados: um, voltado para a rua e as estradas, e o outro lado, voltado para espaços verdes partilhados, transformando assim a relação entre os residentes e os seus arredores. 


A zona foi desenhada com uma uniformidade formal, baseada em  painéis exteriores de parede pré-fabricados, suportados por estruturas tradicionais de betão, conferindo um sentido de rigor e disciplina na aparência, cor, tratamento e textura.


Este bairro sempre me foi familiar — é onde a minha avó vive desde os anos setenta, e onde a minha mãe e os meus tios cresceram e tinham as seas “amizades de bairro” — algo que parece ter praticamente desaparecido de muitas cidades. Embora essa interação social seja principalmente geracional e não particular a bairros específicos, sempre me pareceu algo mais forte em Telheiras. Foi por isso que decidi desenvolver este projecto em particular. Para mim, esta ‘peculiaridade’ tinha de ter alguma ligação com o projecto arquitectónico. 


E tinha: ao construir blocos de apartamentos virados para dois lados (a estrada e os espaços verdes), foi possível criar parques seguros e familiares que os residentes podiam usufruir sem terem de enfrentar a rua, desconstruindo assim, de certa forma, a ideia habitual de cidade. Apesar da gritante falta de zonas verdes acolhedoras nas cidades e da profusão de actividades interiores disponíveis, Telheiras tentou contrariar essa tendência.


Tendo estas considerações como ponto de partida, tentei explorar de que formas a arquitectura e a sua relação com o ambiente natural se conjugaram para criar uma zona tão particular. Os edifícios revelaram ser um verdadeiro labirinto, ideal para brincadeiras de crianças, e também um paradigma do público e do privado. Ou seja, o único espaço verdadeiramente privado é o interior dos apartamentos — todo o resto é um recreio. Foi nesse recreio que me perdi e onde percebi como a arquitectura pode intervir (neste caso, para melhor) e ajudar a criar certas condições no nosso dia-a-dia.

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Maria Salgado
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