
Porque é tão difícil começar do zero? Existe um conforto em tentar explicar o mundo com os livros que lemos ontem. Passa-se a responsabilidade para um passado longínquo de grandes pensadores a preto e branco. Mas essa tarefa também é nossa. Também nós temos de assumir o papel de construir as ferramentas que melhor respondem aos antagonismos do nosso tempo. É através da reconstrução das categorias que conseguimos redimir os erros cometidos nas tentativas anteriores. Jacques Lacan falava da cura psicanalítica como o ponto de chegada depois de “atravessada a fantasia”. O próprio Lacan fazia o paralelo entre a compreensão do inconsciente como antagonismo Real, o pináculo do processo de interpretação dos sonhos, e a crítica marxista da ideologia, a análise sintomática dos mecanismos do capitalismo. Comecemos, então, por aí.
Na nossa ideologia neoliberal, pós-moderna, desinteressada, cínica, tecnocrata, não pode haver espaço para a entrega comprometida. É precisamente aí que reside o nó górdio: ficar para sempre no limbo da (in)decisão racional, sem nunca exercer a liberdade de seguir um caminho até ao fim nem assumir as últimas consequências. Ou mesmo que se siga, é facilmente reversível caso um arrependimento de última hora nos faça virar para o lado contrário. O próprio rebobinar é hoje um serviço à disposição, isto quando não está já incluído no preço inicial. Tudo pode ser transacionado e revertido: tornámo-nos empreendedores do nosso Eu, em constante atualização e sempre prontos a seguir o novo nicho. Constrói-se a identidade através do mercado diário de máscaras geradas por algoritmos. A fluidez encaixa bem na transação. É a vitória final do homo-economicus. Para gaudio de muitos, ser de esquerda resume-se cada vez mais a comprar a marca certa.
Não será o confronto com este paradigma um dos passos necessários da tal travessia do deserto pelas ilusões da fantasia ideológica? Não será mesmo este o momento em que temos de beber a coca-cola para ver que já não está fresca? A compreensão dos antagonismos inerentes a esta forma de vida traz necessariamente a perda do seu poder de encanto. É, portanto, fundamental reconhecer esse passo.
Reconhecer a importância de cada um viver o vazio da reificação plástica na construção de si próprio. O reconhecimento deste vazio implica um confronto violento com os nossos desejos – com a sua forma, o seu objecto e a nossa imaginação. Tornarmo-nos livres dói. A rejeição por decreto ou, nos piores casos, a proibição, só levam ao reforço da jouissance, remetem-nos para um paradigma Mestre-Escravo e ilude-nos com a liberdade de escolha como o fim último da existência. Precisamos mesmo de percorrer o corredor inteiro do supermercado para chegar ao fim e perceber que não era ali. Precisamos de sentir que “afinal não era isto”.
O verdadeiro desafio coloca-se: como atravessar o deserto sem ficarmos perdidos nele? Como atravessar a fantasia sem nos deixarmos ficar pelos oásis que aparecem pelo caminho que mais não são do que a própria ideologia em acção? A verdadeira armadilha reside na forma como imaginamos sair dela. É aí que os grilhões são impiedosos e aniquilam qualquer tentativa de mudar as regras do jogo.
Para que tal não aconteça, recuperar a noção de compromisso é fundamental. Ao adoptarmos uma postura de fidelidade, de sujeitos implicados com uma verdade e de recusa da fluidez narcisista, somos capazes de rejeitar o principal instrumento ideológico de opressão: o desapego. Recuperando o sentido político de unificação das lutas num antagonismo comum, somos capazes de dar um passo em frente na construção de um mapa político inclusivo e verdadeiramente subversivo. Rejeitando o desinteresse cínico, estamos mais perto de não nos deixarmos iludir por soluções modernas e inovadoras. Não precisamos de disrupção vinda de investidores com pele de anjo. Partindo de uma entrega a uma verdadeira transformação da forma de estar, de pensar, de agir, podemos construir soluções que recusem as falsas opções contemporâneas e que não caiam nos cantos de sereia liberais.
Enfrentemos os falhanços do socialismo real, bebamos a coca-cola até ao fim e sigamos deserto a dentro.