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SOMOS A MOSCA NA SOPA

Nalguns dias por ano, milhares e milhares de pessoas saem à rua em manifestações rituais. Têm já data marcada, a mesma data, sempre a mesma data, ano após ano. O mesmo percurso, as mesmas horas, o mesmo passo lento, o mesmo fim anunciado. As mesmas palavras de ordem, ditas com a mesma falta de entusiasmo. Os mesmos organizadores, os que nos querem representar. O que são estas procissões? Tardes animadoras num contexto político sombrio? Momentos de encontro de companheiros, amigos e conhecidos? Demonstrações de força contra o fascismo? Oportunidade para ocupar durante horas as principais avenidas da capital, tomando o espaço público?


Um pouco de tudo isto, talvez. Mas é preciso muito mais. Pode haver momentos bonitos, mas não são ainda lindos. Porque, como já dizia uma música do José Mário Branco, saímos à rua de cravo na mão, mas saímos à rua de cravo na mão a horas certas. Lindo mesmo seria tomar tudo com as nossas próprias mãos. As nossas mãos são capazes de tudo. São capazes de se fechar, punhos cerrados, punhos erguidos. São capazes de puxar alguém do chão, de uma leve carícia na cara, de um abraço. Enfim, são capazes e ninguém sabe até onde são capazes. Às vezes até estamos de punhos fechados, mas temos as mãos nos bolsos...


Criticam os protestos violentos, quando a verdadeira violência é ter de pagar para existir, para comer, para viver debaixo dum teto; violentos são os racistas e fascistas. Lindo seria acabar com tudo o que nos fode a vida: os meios de comunicação social, os ministérios, os bancos, os supermercados, a polícia, as prisões, os senhorios e os patrões. Não queremos uma cidadania bem-educada e domesticada, até porque, e nem sequer o lamentamos, de todas as identidades que nos disseram que tínhamos, a primeira a ir para o galheiro será sempre a da cidadania. Queremos mesmo é que tudo isto deixe de existir, acabar com tudo o que nos domina e controla. Não queremos apenas uma vida melhorzinha, e sim uma vida completamente diferente.


Lindo seria um protesto que não tivesse fim. Não podemos fazer isto só através das bolhas militantes, sem ligação umas com as outras. Precisamos que toda a gente converse entre si para conseguirmos ocupar todos os espaços e podermos ser nós a decidir sobre as nossas vidas, muito além dos nossos locais de trabalho, muito além das nossas famílias, muito além das nossas bolhas. É preciso ir ao encontro dos outros. Mais e mais gente amiga se ia juntar. E não ia haver mesmo ninguém que nos parasse. É um lindo sonho para viver, quando toda a gente assim quiser sentir um amor gigante.


Afonso e Rodrigo

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Afonso + Rodrigo